O conceito de autismo tem sofrido modificações
diversas nos últimos tempos. Desde as primeiras
observações de Kanner e a teorização de
Mahler de autismo como fase do desenvolvimento
normal, muito se avançou no estudo do desenvolvimento
infantil, nomeadamente no reconhecimento
no recém-nascido de um equipamento
sensório-motor e perceptual relativamente diferenciado,
a par com uma capacidade inata de
comunicar com o exterior através de modalidades
interactivas relativamente complexas.
Hoje o autismo é encarado pela maioria dos
autores como uma perturbação severa da relação
e da comunicação, apresentando a criança dificuldades
marcadas na regulação, processamento
e organização da experiência sensorial e perceptiva.
Face à gravidade destas situações, vários tipos
de tratamento têm sido implementados, numa
tentativa de encontrar a melhor forma de abordar
o processo patológico.
A intervenção terapêutica no autismo durante
a 1.ª infância está estreitamente associada à
questão do diagnóstico precoce destas situações.
De facto, a evolução destas crianças depende
largamente de uma detecção atempada de sinais
e sintomas que permitam a implementação precoce
de um tratamento, para além de depender
da gravidade da perturbação e dos meios de intervenção
de que dispomos.
No 1.º ano de vida o diagnóstico clínico é difícil.
O estudo de videos familiares e também a
observação directa das crianças têm-nos auxiliado
na caracterização de alguns destes sinais, que
não são no entanto patognomónicos e devem ser
interpretados cuidadosamente.
Geralmente o diagnóstico é efectuado mais
tardiamente, durante o 2.º ou mesmo no 3.º ano
de vida. Não é raro serem os pais os primeiros a
mostrar apreensão face à criança e a alertar o
médico assistente, que no-la envia após processos
de investigação mais ou menos longos. Menos
frequentemente, os pais chegam à consulta
de Pedopsiquiatria por iniciativa própria e sem
antes terem recorrido a outros serviços de saúde.
Em qualquer das situações, os pais apresentam-
nos geralmente uma criança que os preocupa
em primeiro lugar pelo atraso de linguagem:
em certos casos a criança nunca falou, noutros
houve uma regressão da linguagem e em outros a
perturbação da linguagem consiste numa neolinguagem
ou numa ecolália. O défice nas interacções
sociais é outra das preocupações dos
pais: são frequentemente crianças que se relacionam
por momentos breves, que alternam com
períodos longos de retirada. Estes sinais, associados
a comportamentos bizarros como medos
inexplicáveis e actividades repetitivas, fazem
os pais referi-los como «bebés estranhos ou especiais».
São crianças que despertam nos pais sentimentos
de tristeza e de perplexidade pela indiferença
que parecem mostrar na relação – parecem
de facto não necessitar afectivamente dos
pais e serem mesmo incapazes de usar os cuidados
maternos. Penso que é também este o sentimento
do observador quando está com estas
crianças – é no fundo o sentir-se «inanimado»
pela tendência que a criança com autismo tem de
ignorar o outro enquanto ser humano e de reconhecê-
lo como portador de um interior, de um
espaço psíquico e de afectos.
Seria o que Uta Frith chama, na sua Teoria da
Mente, «a incapacidade de reconhecer e de empatizar
com o estado mental do outro, de reconhecer
os sentimentos da outra pessoa e de empatizar
com ela».
Devido a este quadro, os pais chegam-nos frequentemente
num estado de grande desespero;
sentem-se impotentes, completamente ultrapassados
pela situação. Alguns ainda não desistiram
de tentar entrar em contacto com a criança e continuam,
na sua ânsia de obter respostas, a estimulá-
la de uma forma muitas vezes excessiva, à
qual a criança reage com retraimento, criando-se
assim ciclos viciosos na comunicação. Outros
pais acabaram já por desistir, desiludidos pela
ausência de respostas por parte da criança.
Como poderemos então ajudar estes pais e
estas crianças a encontrarem-se e a encontrar um
espaço de relação?
Na abordagem terapêutica que praticamos na
Unidade da Primeira Infância (e alargando o
diagnóstico de autismo ás crianças com o
diagnóstico de perturbação grave da comunicação
e da relação), procuramos sempre ter em
conta dois aspectos:
1) A globalidade do funcionamento psíquico
da criança e a existência de dificuldades a
vários níveis (linguístico, motor, cognitivo,
afectivo). É importante compreender a
criança no seu todo e não implementar terapias
isoladas, direccionadas exclusivamente
a uma área do funcionamento.
2) O impacto da perturbação da comunicação
na relação pais-criança e as «distorções»
que aquela traz consigo. Se existir um melhor
conhecimento da criança pelos pais,
com a ajuda do terapeuta, é possivel modificar
o registo afectivo da comunicação
pais-criança e torná-la mais adaptada às
modalidades «especiais» da criança.
Para além destes aspectos, há ainda a considerar
que muitas destas crianças apresentam uma
hipersensibilidade ou reactividade excessiva a
determinados estímulos do exterior (devida a
dificuldades na regulação destes estímulos), o
que as levaria a desenvolver reacções de evitamento,
em casos extremos a construir verdadeiras
barreiras contra um meio exterior sentido como
traumático. Este «corte» com a realidade vai
impedir a criança de captar informação e de organizá-
la em traços mnésicos; as experiências relacionais
não são desta forma integradas nos esquemas
sensorio-motores, os elementos da realidade
são percepcionados de forma fragmentada,
não coerente, não se desenvolvendo os processos
mentais necessários à organização de um espaço
psíquico (Self emergente).
Apesar do seu retraimento e isolamento acentuados,
estas crianças estabelecem no entanto,
por momentos mais ou menos breves, modalidades
de contacto com o exterior, embora o façam
através de formas muito primitivas de comunicação.
Se o terapeuta se mantiver atento a estes
fragmentos, a estes pequenos momentos de
contacto, é-lhe possível dar o primeiro passo
para iniciar com a criança algum tipo de envolvimento
interactivo. E será este um dos primeiros
objectivos da terapia – conseguir fornecer à
criança experiências interactivas que lhe permitam
organizar um sentimento de si própria como
indivíduo capaz de se relacionar e de estabelecer
com os outros sequências interactivas em que
exista reciprocidade e intencionalidade. Nesta
perspectiva, o terapeuta deve sempre ter em
atenção que as defesas da criança não deverão
ser forçadas acima dos limites por ela suportáveis,
pois isto poderia levar, inversamente, a uma
retracção da criança.
A melhor maneira de construir esta ponte de
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ligação com a criança será prestar atenção àquilo
que parece interessá-la e seguir a sua espontaneidade,
procurando dar um significado afectivo a
pequenos sinais, como um gesto, um olhar fugaz,
de forma a que estes possam adquirir um sentido
na comunicação. Será o que alguns autores chamam
«abrir e fechar círculos de comunicação».
Isto requer do terapeuta uma grande capacidade
de atenção empática, em relação aos comportamentos
da criança e também em relação aos
seus próprios estados afectivos desencadeados
pela criança. Nesta fase, o terapeuta terá muitas
vezes que recorrer a formas mais primitivas de
comunicação, que envolvam o gesto, o movimento
e não apenas à linguagem – é importante
nunca trabalhar acima do nível de desenvolvimento
da criança e ter em conta que no início, as
palavras usadas isoladamente ou como conceitos
abstractos, se revestem de pouco significado
para a criança.
Claro que cada criança é única e não há métodos
abrangentes que possam ser aplicados a todas
elas. Algumas delas, por exemplo, devido às
suas dificuldades na regulação dos estímulos,
são sobrereactivas a estímulos sonoros e basta
um tom de voz mais alto do terapeuta para provocar
retraímento ou aumentar as suas actividades
perseverativas. Outras são hipersensíveis a
estímulos visuais – luzes intensas ou expressões
faciais muito animadas podem ser suficientes para
ultrapassar o limiar por elas suportável.
Perante as características e competências únicas
de cada criança, o terapeuta tem a seu cargo
descobrir quais as modalidades interactivas que
lhe permitem criar um espaço de relação, um envolvimento
emocional, em que a criança comece
a sentir prazer em estar com o outro.
À medida que o terapeuta vai conseguindo estabelecer
novas e mais sólidas pontes de contacto
com a criança, o isolamento e as actividades
repetitivas diminuem, a capacidade de
atenção aumenta e é então possível introduzir
alguns símbolos no discurso, sempre relacionados
com o contexto interactivo (por exemplo, fazer
rolar um carrinho a velocidades diferentes e
ir pontuando com «depressa» e «devagar»).
Progressivamente, a criança vai integrando as
sequências interactivas nas suas representações
mentais, adquire a capacidade de categorizar as
experiências ao nível destas representações, que
no início são apenas «ilhas de representações»;
eventualmente adquire a capacidade de fazer ligações
entre as ideias e aceder a formas de pensamento
mais diferenciadas.
Relativamente aos pais, estes podem estar
presentes nas sessões e através da observação do
terapeuta com a criança, começar a entender melhor
as reacções do seu filho e a conseguir uma
leitura mais contingente dos seus sinais «afectivos
». Ao fim de algumas sessões, há uma maior
adaptação dos pais às modalidades particulares
de contacto da criança e vários estudos mostraram
que, após um período de 5 a 8 meses de tratamento,
existe um aumento da capacidade de
atenção da mãe face ao bebé e também aumento
da reciprocidade na interacção.
Numa segunda fase do tratamento, consideramos
de particular importância promover o processo
de socialização. A existência de unidades
de dia onde a criança possa receber, para além de
apoio terapêutico individual, apoio ao desenvolvimento
psicomotor e à socialização, torna-se
então fundamental.
Passaria agora a apresentar o caso clínico de
uma criança com o diagnóstico de autismo, a
quem chamarei João (J.).
O João tem já 3 anos de idade quando vem
pela primeira vez à consulta de Pedopsiquiatria.
Vem acompanhado por ambos os pais.
A mãe refere ter começado a preocupar-se
com o comportamento do J. cerca dos 18-20 meses.
Uma das suas preocupações dizia respeito à
regressão da linguagem – o J. em bebé tagarelava
bastante, dizia papá e mamã, aquisições que
acabou por perder. Neste momento diz raras palavras
(colo, à rua, deixa) e vocaliza pouco.
Durante os últimos 6 meses perdeu o interesse
pelos objectos e usa de forma sistemática o evitamento
do olhar. Não entra em contacto com
outros familiares ou pessoas a não ser com a
mãe.
È descrito como uma criança geralmente bem
disposta, mas que por vezes faz birras prolongadas
e inexplicáveis, sem desencadeante aparente.
Apresenta uma grande intolerância à frustração
e desiste facilmente de objectos que parecem
inicialmente interessá-lo. A mãe refere ainda
reacções de rejeição violentas perante todas as
situações novas, com comportamentos de auto e
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de heteroagressividade difícilmente controláveis
pelos pais.
À observação, o J. é uma criança de aparência
física agradável, harmonioso e apresenta-se bem
cuidado. Ao primeiro contacto notamos que faz
birras excessivas, desencadeadas abruptamente
apenas pela entrada no espaço do Serviço. A
mãe não consegue acalmá-lo e é ele que acaba
por se acalmar por si próprio ao fim de bastante
tempo. Só nesta altura começa a interessar-se por
alguns brinquedos que se encontram no gabinete,
mas cedo verificamos que o J. se mantém pouco
tempo na mesma actividade – passa rapidamente
de um brinquedo a outro, manuseando-os simplesmente,
numa actividade sem qualquer esboço
de significado.
Passa grande parte do tempo a deambular pelo
gabinete, completamente alheado, indiferente
ao que o rodeia. Durante estes percursos dirigese
algumas vezes aos pais, sem no entanto interagir
com eles.
A entrevista vai sendo pontuada por crises
clásticas, que parecem não ter qualquer factor
desencadeante imediato. Durante todo o tempo
que permanece no gabinete, o J. não estabelece
contacto visual; a linguagem limita-se a «sons» e
pequenos estalidos com a língua, os quais repete
de forma estereotipada, sem qualquer intenção
de comunicar. Não parece entender a linguagem,
uma vez que não responde a ordens simples.
O J. tinha já realizado vários exames complementares
de diagnóstico, que se revelaram todos
eles negativos. Iniciou então no nosso Serviço
uma psicoterapia de frequência bissemanal e
encontra-se em seguimento há cerca de um ano e
meio.
Quais foram os grandes desafios que se nos
colocaram com o J.?
Inicialmente o J. não se separava da mãe; durante
as sessões, a sua atitude alternava entre
momentos de alheamento e reacções heteroagressivas
de grande violência, aparentemente
inexplicáveis, acompanhadas de choro e gritos.
Recusava activamente o contacto comigo e tinha
grande dificuldade em suportar o espaço fechado
do gabinete, queria constantemente sair.
Foi necessário trazê-lo durante algum tempo
para um espaço mais aberto, onde não sentisse a
minha presença de uma forma tão ameaçadora.
Neste espaço, o deambular era uma constante
– a minha atitude foi a de tentar mobilizar a sua
atenção, procurar que sentisse prazer durante os
breves momentos em que estava comigo e trazê-
-lo assim para a relação.
Inicialmente isto foi conseguido através de
jogos de movimentos corporais e era nestes momentos
que ele começava a olhar-me, embora
sempre de forma fugaz. Estes progressos permitiram,
depois de algumas sessões, voltar para o
espaço do gabinete.
Outro dos desafios foi tentar modificar as
actividades repetitivas e transformá-las em actividades
interactivas intencionais, o que penso ser
um dos maiores desafios que se colocam aos terapeutas
destas crianças. Como disse anteriormente,
o objectivo do terapeuta será sempre
abrir e fechar círculos de comunicação e é neste
sentido que deve procurar ultrapassar este obstáculo.
Por exemplo, no caso do J., ele passava
muito tempo a alinhar objectos – comecei primeiro
por alinhar com ele os objectos, depois
por trocar-lhes a ordem habitual ou então estendia-
lhe o próximo brinquedo que sabia ser habitual
ele ir buscar e ele passava a aceitá-lo da minha
mão. Inicialmente o J. voltava a pôr os
objectos segundo a mesma ordem, ou simplesmente
desinteressava-se, outras vezes zangavase
e atirava com os brinquedos, ao que eu respondia
sempre com o reconhecimento dos seus
estados afectivos.
Apesar destas reacções serem aparentemente
negativas, elas são no entanto reacções afectivas
contingentes e acabam por permitir fechar o círculo
de interacção iniciado. É mesmo durante os
momentos de frustração que a criança está motivada
para abrir e fechar vários círculos de comunicação;
embora não deva deliberadamente frustrar
a criança, o terapeuta deve ter presente que
estas situações de «zanga» também derivam, de
certo modo, de divergências de opinião, que podem
por sua vez ser usadas para entrar em contacto
com a criança.
Apesar das melhorias conseguidas, o J. continuava
a isolar-se muito nas sessões e a rodopiar
sobre si próprio repetidamente. Este foi outro
dos desafios a vencer – muitas vezes segurava-
-lhe as mãos e rodava também com ele ou procurava
transformar o rodopiar num jogo de movimento
e dar-lhe assim algum significado.
O J. começa finalmente a interessar-se pela
sua imagem no espelho. Faz várias experiências
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em frente ao espelho colocando plasticina no cabelo
ou tapando com ela os ouvidos; coloca
ainda objectos sobre a cabeça, à laia de chapéu,
uma pequena mala às costas, num movimento
constante de se completar, de dar continuidade
aos limites do corpo.
Pela mesma altura inicia «jogos» em que parece
imitar cenas do seu quotidiano (pôr o ursinho
a dormir, a situação alimentar, sentar-se na
cadeira do bebé,...) no que parece ser uma colagem
a comportamentos observados, sem que estes
tenham um verdadeiro simbolismo.
Nas últimas sessões, o J. demonstra algumas
atitudes que me fizeram pensar que começa a reconhecer
no outro um interior subjectivo e a ser
sensível aos estados afectivos de pessoas que são
para ele significativas.
Começa a mostrar uma certa ambivalência em
relação a mim – agride-me quando o frustro, mas
quase de imediato pede o meu colo, a chorar, ficando
abraçado ao meu pescoço.
Quando quer ajuda para realizar os puzzles
coloca as peças directamente na minha mão e cada
vez com menos frequência usa a minha mão
para atingir os seus objectivos.
Ao nível da linguagem, existe agora uma
ecolália incipiente, que surge no contexto da
relação.
Apesar destes progressos, o J. continua a funcionar
frequentemente em modalidades unisensoriais
e as suas modalidades de conhecimento
são ainda fundamentalmente incorporativas.
Nesta fase, tentámos simultaneamente a integração
no grupo de crianças da creche terapêutica.
Inicialmente surgiram defesas autísticas
maciças, depois progressivamente o J. começou
a mostrar interesse pela actividade das outras
crianças e a tentar imitá-las, embora sem partilhar
ainda as suas experiências.
O J. fez, até ao momento e face à gravidade
da sua perturbação, uma boa evolução.
O futuro destas crianças, mesmo quando
submetidas a tratamento intensivo, é porém
incerto. No entanto, na nossa experiência temos
verificado que em muitos casos se conseguem
progressos consideráveis ao nível da relação
mãe-criança, na capacidade de socialização, de
vinculação às figuras parentais e melhoria na
capacidade de dar respostas afectivas contingentes.
Se a terapia for iniciada antes dos 24 meses
(principalmente em casos de autismo secundário),
se os pais forem interessados e colaborantes
e a criança mantiver o seu potencial cognitivo,
há a possibilidade de evoluções particularmente
positivas.
CRISTINA MARQUES
Assistente hospitalar de Pedopsiquiatria, Unidade
da Primeira Infância, Rua 6 à Calçada dos Mestres,
8, 1070 Lisboa.
da Primeira Infância, Rua 6 à Calçada dos Mestres,
8, 1070 Lisboa.
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