quinta-feira, dezembro 07, 2006

"MAYDAY MAYDAY" - Intervenção Precoce

Inquietações Pedagógicas
"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…” Jorge de Sena in Metamorfoses



"MAYDAY MAYDAY" - Intervenção Precoce
Joaquim Bairrão*

Como todos sabem “MAYDAY” é um sinal de socorro internacional que se acciona numa situação de perigo eminente. Dado o que vem acontecendo entre nós à educação especial e à Intervenção Precoce (IP) em particular, justifica-se, pois, um sinal de alerta sobretudo para os perigos que esta corre. Este sinal de alerta é extensivo a toda a dita Educação Especial (EE), mas neste curto espaço e neste momento só à Intervenção Precoce nos referiremos tal o seu valor paradigmático.Como toda a gente do ofício sabe, a Intervenção Precoce é uma abordagem multidisciplinar em educação especial, geralmente um conjunto de recursos para crianças em risco ou “risco já adquirido” (biológico, social, ou compósito), que abarca a população entre os zero e os 5/6 anos. Tal modalidade preventiva em EE, pode revestir várias modalidades de intervenção nomeadamente, nos contextos familiares, pré-escolares (creche e jardim de infância) ou noutros locais de guarda ou cuidados onde tais crianças se encontram. É pois uma definição que implica três conceitos fundamentais de prevenção – a primária (evitar que as dificuldades ocorram), a secundária (melhorar as dificuldades das crianças com vista à sua eliminação) e terciária (melhorar e não permitir o agravamento das dificuldades das crianças com necessidades educativas especiais já adquiridas) levando a que melhorias na pessoa e no meio ambiente proporcionem uma melhoria concomitante da qualidade de vida. Aliás, há muito que alguns países após o Warnock Report de 1978[1] substituíram o termo educação especial por educação de crianças com necessidades educativas especiais. Voltemos à Intervenção Precoce. Portugal tivera uma primeira tentativa de intervenção nas primeiras idades para crianças cegas nos anos 60, a nível nacional, o que levou a que à data fosse considerado pioneiro. Essa experiência termina no tempo do Ministro Rebelo de Sousa e é transformada num serviço bastante diferente e só para os Distritos de Lisboa e Porto. Sem fazer um longo historial da Intervenção Precoce em Portugal, importa referir que esta surge por volta dos anos 80[2], primeiro em Lisboa e depois em Coimbra, com serviços de Intervenção Precoce que poderemos reputar como de alta qualidade.Assim, como referimos noutro contexto, graças a circunstâncias que seria ocioso citar (internacionalização dos contactos com as Mecas da Intervenção Precoce, troca de cientistas, estágios no estrangeiro, parcerias com Universidades, etc.), por volta dos finais dos anos 80 e sobretudo nos anos 90 temos entre nós um modelo de Intervenção Precoce bastante razoável e sem os habituais enviesamentos da Educação em Portugal. As Agências Internacionais e outras organizações admitiram como muito aceitáveis as referidas iniciativas de Intervenção Precoce que em Portugal estavam, então, a ocorrer.Mais tarde, em 1999, surge o Despacho Conjunto 891/99, dos Ministérios da Educação, da Saúde, do Trabalho e Segurança Social, ditando “Orientações Reguladoras” para a IP, tratando-se de um documento aceitável, não obstante a necessidade de uma melhor adaptação à realidade do país. A título meramente de exemplo, recordamos a afirmação de Simeonsson, Björk Akesson, Bairrão et Al. (2006) de que “todas as crianças em risco devem ter acesso à IP, isto é, crianças em risco (biológico ou social) e com alterações adquiridas”. Ora este documento não tem tal aspecto de acção tão geral, como os autores o referem.O Diploma Português[3] destina-se predominantemente a “crianças com deficiência” ou a crianças com “risco de atraso grave do desenvolvimento”. Porém, esta última categoria contem em si um paradoxo, pois, se de risco se trata e, não ainda de atraso do desenvolvimento, será difícil prever “a priori” se o atraso vai ser ou não grave. Tirando essa lacuna, o documento é aceitável embora esperemos que o Grupo Interdepartamental nos dê outro retrato mais actual da I.P. e que contribua para que entre nós se caminhe para uma legislação como internacionalmente se recomenda. E volto a citar os referidos autores: “A importância da intervenção e inclusão precoces para crianças em risco de atrasos no desenvolvimento ou com incapacidades foi avançada na Declaração de Salamanca (1994) e na declaração “Education for All” das Nações Unidas”. Ninguém que aceite os convénios internacionais e que os assinou pode fazer de outro modo.Claro, convém dizer que os dois pólos dinamizadores iniciados nos anos 80 e seguintes, referidos anteriormente, não foram as únicas experiências de IP Estas foram e são indiscutivelmente de alta qualidade, mas outras foram acontecendo um pouco por todo o país, de melhor ou pior qualidade, a que noutros contextos já nos referimos.Mas, então, porquê este sinal de alarme do estado actual da IP entre nós? Na nossa prática de trabalho com técnicos de intervenção precoce no Porto, sobretudo com técnicos dos Apoios Educativos[4], verificámos que se tornava cada vez mais problemático, pelo menos na zona Norte do país, realizar uma I.P. tal como o Despacho Conjunto propunha, uma vez que quase cada um fazia a IP que lhe apetecia. O velho círculo de Simeonsson não era cumprido na triagem, na avaliação pluridisciplinar, na participação da família aos vários níveis do sistema; a formação contínua dos técnicos, a multidisciplinaridade de avaliação dos programas, a coordenação interserviços ou não existia ou não era uniforme. Essa análise também foi objecto de um estudo, promovido em 1997 pelo próprio ME, a nível nacional revelando exactamente este, repito, esquisso acima referido.A organização então existente e as regras organizativas eram irracionais e saídas de cabeças que talvez de IP nem as iniciais conhecessem: uma IP sem forte componente médica e de saúde, sem educadores com alta formação em educação especial (Mestrado, por exemplo, em I.P.), e em que a colaboração de outros técnicos, terapeutas (fala, fisioterapia e ocupacional), assistente social, psicólogo de educação, etc. era muito escassa e variável e a articulação entre as várias agências era praticamente inexistente.No entanto, como profissional das questões da Psicologia e da Educação com mais de 40 anos de experiência, constatávamos e continuamos a constatar, pelo menos no Grande Porto, não por culpa dos técnicos, mas de “ordens”, “regulamentos”, etc., que crianças mudavam de técnico por vezes no mesmo ano, técnicos que obtiveram ganhos preciosos com crianças eram substituídos por outros, por vezes sem experiência, enfim, ética e cientificamente, a I.P. apresenta razões de alarme para as crianças e famílias que cumpre reflectir conjuntamente e chamar à atenção os policymakers!Se bem me lembro, já o Decreto-lei n.º 891/99 tinha sido recentemente publicado em Diário da República e algumas esperanças ficaram, no entanto, de que a situação da IP pudesse melhorar caso o mesmo viesse a ser cumprido pelas entidades públicas.Mas os nossos receios estavam ainda para vir como diria H.G. Wells na sua Guerra dos Mundos. Recentemente, fiquei estupefacto, quando, certo dia, tomo conhecimento do documento de um tal Conselho Científico – Pedagógico de Formação Contínua[5] que apresentava duas terríficas decisões que passo a citar:“Na sequência dessa reunião, a Secção decidiu (reparem decidiu!):Proceder à revisão dos critérios de categorização dos domínios de especialização em educação especial;Adoptar para as novas propostas de cursos, a partir de 29 de Junho as categorizações seguintes, no âmbito das necessidades educativas especiais:· A71 – domínio cognitivo e motor· A72 – domínio emocional e de personalidade (?)· A73 – Domínio de audição e surdez· A74 – domínio de visão· A75 – Domínio de comunicação e linguagemPara não falar, por agora, nas vetustas concepções que o documento encerra, depreendi, não sei se bem se mal, que os técnicos que possuíam, por exemplo, Mestrado em Intervenção Precoce (válidos internacionalmente) não eram considerados no domínio da dita Educação Especial e, mais, a esses profissionais ficara-lhes vedada, no novo sistema de concursos para colocação dos docentes, a possibilidade de concorrerem e entrarem na carreira de educação especial.E, por sua vez, outros profissionais com especialização em educação especial contemplados no referido concurso não podiam trabalhar em Intervenção Precoce.Será que entendi? Deu-se uma cisma em Portugal entre Intervenção Precoce e Educação Especial?Portanto fiquei sem saber como, a partir de agora, se irá fazer precocemente a dita prevenção (primária, secundária ou terciária) das dificuldades das crianças. Será preciso deixá-las crescer e agravar essas dificuldades? Mais ainda, se o sistema de Educação Especial exclui o atendimento precoce, então, este passa a ser um sistema amputado de uma das suas principais valências - a educação especial precoce feita por técnicos habilitados para isso, como mandam os critérios internacionais.Seria que o Guralnick, presidente da International Society for Early Intervention, numa noite mal dormida ditara ao mundo tal recomendação? Escrever ao Rune Simeonsson ou R. McWilliam e a outros sábios da IP para saber se tinham mudado as regras? Tal não acontecera, claro. Mas, entre nós tudo é possível.Estão hoje demonstradas, a nível das neurociências, as perigosas consequências da ausência de IP no posterior desenvolvimento das crianças e que tal ausência pode tornar irreversíveis certas alterações. Quando já se fala em Intervenção precocíssima in utero na prevenção das dificuldades e doenças futuras que poderão afectar os seres humanos, será possível que o apoio precoce dos 0 aos 5 anos tal como sugerem as convenções internacionais se torne tão difícil entre nós? Será que voltamos ao tempo da não IP e que seja o próprio ME, que aliás tanto lutara por ela, que agora a coarcta? Por isso, termino repetindo MAYDAY MAYDAY.


*Professor Emérito da Universidade do Porto[1] DES (Department of Education and Science) (1978) Warnock Committee Report (London, HMSO)[2] As instituições pioneiras em Intervenção Precoce foram nomeadamente a Direcção de Serviços de Intervenção Psicológica do então Ministério do Trabalho e Segurança Social e em Coimbra a equipa que imanada do Hospital Pediátrico de Coimbra, actual PIIP de Coimbra, que desenvolveram serviços de qualidade e dentro das normas internacionais para a Intervenção Precoce. Hoje felizmente o PIIP continua a desenvolver importantes acções no domínio da I.P. e a defender o seu modelo, menos sorte teve a DSOIP, que já com outro nome e “descendo de divisão” (termo futebolístico), o CEACF (Centro de Estudos e Apoio à Criança e à Família) foi desmantelado em 2006. Resistiu largos anos mas os pioneiros também se abatem![3] Despacho Conjunto nº 891/99, de 19 de Outubro, diz: “no domínio da intervenção precoce para crianças com deficiência ou em risco de atraso grave de desenvolvimento” (o sublinhado é nosso)[4] O que lhes aconteceu? Realizou-se alguma avaliação científica rigorosa que levou à sua extinção ou transformação?

Publicado no Jornal de Letras - Educação