quinta-feira, dezembro 20, 2007

Crónica de Daniel Sampaio BRINCAR


Nunca pensei que os gerentes da Duracell se preocupassem com estudos sobre pais e filhos. Para mim, mandavam numa simples fábrica de pilhas, capazes de fazer correr sem parar um irritante coelhinho! Ideia preconcebida: acabam de publicar um estudo com 900 crianças, onde se demonstra que as portuguesas são as que diariamente menos brincam com os pais. Só seis por cento dos nossos meninos admite brincar com os pais todos os dias, um número muito abaixo da média europeia, onde uma em cada cinco crianças tem momentos diários de divertimento com a família. Como chegámos a esta triste situação? Basta olhar em redor e compreenderemos tudo. O governo falhou na política de apoio à família e muitos dos nossos pais têm má qualidade de vida: salários baixos, empregos instáveis, maus transportes, pouco enquadramento e deficiente articulação com as escolas, como podem ter disponibilidade ou sequer desejar mais filhos? Outros não têm dificuldades financeiras de maior, mas padecem de egoísmo ou vivem na crença de que educar é uma tarefa esgotante, por isso o que importa é arranjar brinquedos para "entreter" os mais novos: já basta o trabalho para os fatigar, em casa é preciso "distrair", "desanuviar" ou "descansar". Deste modo, são bem vindos os novos brinquedos electrónicos: com a destreza das crianças de agora, depressa aprenderão como os manipular e não importunarão os adultos por largos momentos. A consola de jogos, o computador e a televisão transformaram-se assim na "baby-sitter" dos tempos modernos, a garantia de que os mais novos estarão ocupados por umas horas: com trabalhos de casa feitos à pressa e uma refeição rápida, depressa se chega à hora de deitar, amanhã correrá melhor! Mas não corre: em todo o lado vemos crianças inquietas com incapacidade de pensar, irritáveis por sono insuficiente, indisciplinadas na escola por ausência de limites em casa, com dificuldades na leitura e na escrita. Por exemplo, já experimentaram pedir a uma criança de oito anos para ler um texto em voz alta? O resultado é surpreendente: gagueja, ignora a pontuação e depressa se fatiga, porque não está habituada a ler em público, só é treinada para descodificar símbolos do "gameboy" ou da "play-station". Que saudades das crianças que brincavam na rua, que jogavam à bola na praceta ao pé de casa ou que fugiam para se divertir em casa dos vizinhos! Hoje saem da escola a correr, trazidas por pais apressados que as depositam no judo, na música, na natação ou no explicador, para mais tarde serem recolhidas à pressa, só a tempo de uma refeição apressada antes de tentarem dormir...
Que fazer? Em primeiro lugar, lutar para que tudo isto se altere. Passar a mensagem de que o jogo é a melhor maneira de as crianças aprenderem tudo: se for fornecido um contexto que permita a uma criança o relacionamento tranquilo com um adulto, ela será a primeira a aprender a importância da sua relação com os mais velhos e, movida pela sua curiosidade natural (existente em todas), esperará a brincadeira mais ou menos divertida, mas sobretudo terá a certeza que a sua fantasia crescerá. Tudo isto poderá ser feito sem brinquedos, com as mãos de pais e filhos e o corpo de todos, sem apitos electrónicos ou ecrãs tecnológicos individuais, a dificultarem a simples troca de olhar em família. E as emoções desencadeadas pelos brinquedos de hoje, quem as conhece, se depressa são descarregadas no jogo seguinte? Não podemos esquecer que educar consiste em a pessoa se oferecer como modelo. Uma pessoa fica "educada"quando cresceu e já é capaz de se constituir como um exemplo a seguir: quando um irmão imita o mais velho é porque este desempenhou um papel capaz de ser seguido (esperemos que no sentido positivo) pelo mais novo. Mais do que os livros ou revistas, que embora cruciais podem dar olhares perturbados da realidade (sobretudo se não os lermos em conjunto com os mais novos); mais do que recomendações palavrosas de pais para filhos, tantas vezes não ouvidas ou depressa esquecidas; muito mais do que o último jogo de computador, em breve substituído pelo que acaba de sair, ou consumido a correr para alcançar o objectivo de "vencer mais um obstáculo", a resposta está no olhar da criança que nos pede: "Podes brincar comigo?"

2 comentários:

Anónimo disse...

Essa sempre foi uma das minhas grandes revoltas, o facto de não ter tempo para parar e brincar, falar, poder ir buscar o meu filho á escola, ajudá-lo nos trabalhos de casa, etc.
Não é má vontade minha, não é o facto de não querer estar com o meu filho, é o factor tempo e cansaço ao fim de um dia de trabalho que me fazem ficar depressiva por não poder dar tanta atenção ao meu filho adolescente como ele merece. Já com 15 anos, dentro de pouco adulto e eu não consegui estar ao pé dele, se calhar nas alturas em que ele mais precisou de mim.
Será que exite alguma forma de dar volta a isto? O facto de os pais não terem tempo para conviverem com os filhos?

piprem disse...

Pode parecer uma banalidade dizer que o tempo é o que nós fazemos dele, mas no que toca a relação entre pais e filhos (e qualquer outro tipo de relação) é a qualidade do tempo que conta, e não a quantidade de tempo que se passa juntos. E isto passa por sabermos aproveitar as coisas que parecem banais, como preparar o jantar, e torná-las um bom momento de relação, onde o pai/mãe está atento, desperto, disponível para escutar, olhar e pensar o seu filho. Infelizmente, quando nos sentimos deprimidos esta disponibilidade para pensar e olhar os nossos filhos fica bloqueada, e aí talvez seja necessário o pai/mãe "arrumar-se" primeiro, internamente, delimitar o seu objectivo e sentido de vida, pois com este trabalho interior, provavelmente ajudará muito mais o seu filho a crescer saudavelmente.